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A religião estragou-me a adolescência 2006-07-11 10:22:04 Rute Pereira passou 20 anos aprisionada numa religião na qual não se revia. Não podia ver televisão ou comer carne, era obrigada a usar cabelos longos e saias compridas e, se continuasse a cumprir os preceitos da congregação, ainda hoje, provavelmente, não se teria casado. Milhares de jovens portugueses vivem nestas condições: envergonhados na sua própria pele, esmagados sob uma ditadura psicológica, profundamente deprimidos – no fundo, em cativeiro.
Cabelos longos, saias compridas. Para a maior parte dos mortais será uma estética perfeitamente legítima, de certa forma igual a tantas outras. E, porém, esses dois itens permanecem para Rute Pereira como grandes símbolos de um cativeiro. Até aos 20 anos, a jovem lisboeta viu-se obrigada a cumprir os mais variados e restritivos cânones de uma pequena congregação cristã reformista, na senda das opções paternas. Não podia ver televisão ou sequer comer carne. Tinha de ‘guardar o sábado’ e de cumprir um ostensivo ritual de fé ao pôr-do-sol de sexta-feira, de preferência à frente de amigos e vizinhos. E, para além de não poder usar qualquer jóia ou artigo de maquilhagem, tinha também de andar permanentemente de cabelos longos e saias compridas, à revelia das tendências da idade e da época. Resultado: virou uma adolescente tímida e deprimida. É ela própria quem reconhece não ter, ainda hoje, recuperado em absoluto da sua prisão.
“Se me libertei ou não, não sei. Ainda hoje me amedronta ir para o Inferno. Quando penso no fim dos tempos, não sei onde estarei. Serei perseguida pelo Estado? Estarei no mundo dos ímpios? Serei queimada? Não sei. É verdade que me sinto muito mais livre desde que deixei a igreja. Mas ainda me pergunto se fiz bem sair”, diz.
“Em todo o caso, a igreja estragou a minha adolescência. Obrigou-me a ser diferente dos outros quando eu só queria ser igual. Portugal é um país cheio de preconceitos e vestir-me ou comportar-me daquela maneira levava as pessoas a perguntarem-se se eu era cigana ou anormal. Os miúdos conseguem ser muito maus uns para os outros, já se sabe. E, por muito que eu quisesse passar despercebida, chamava sempre a atenção. Passei toda a minha juventude profundamente deprimida. E nem pensar em levar um amigo lá a casa, claro ”
Rute Isabel da Silva Rodrigues Pereira não era ainda nascida quando o pai, empregado de escritório numa grande empresa de Lisboa, se converteu aos preceitos da Igreja Adventista do Sétimo Dia, religião de origem americana que se concentra na segunda vinda de Cristo. Se as regras desta igreja já eram restritivas, mais ainda o eram as do Movimento de Reforma, corrente originada por uma cisão no movimento adventista e à qual o progenitor veio a aderir pouco depois da primeira conversão.
Ao todo, os membros da congregação são pouco mais de 100 em todo o País. E foi precisamente entre eles que, por obediência, Rute Pereira viveu ao longo das primeiras duas décadas de vida, acorrendo primeiro a um templo em Lisboa e, a partir do momento em que a família se mudou para a Quinta do Conde, no concelho de Sesimbra, a um templo no Seixal.
“Toda a minha família era católica. Só na família do meu pai havia um tio padre e uma tia freira. Tudo gente muito católica, do Minho. Mas o meu pai converteu-se e desde criança que fui habituada a uma rotina que incluía Escola Sabatina e cultos aos sábados de manhã, reuniões de jovens aos sábados à tarde e passeios da igreja aos domingos. Mais: do pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol de sábado não se podia trabalhar ou falar de qualquer assunto mundano. E, na sexta-feira à tarde, tínhamos de cantar um hino alto e bom som, lendo depois a bíblia e fazendo uma oração. O meu pai chegou a fazê-lo em centros comerciais e a maior parte das vezes, mesmo estando em casa, abria as janelas para toda a gente ver. Eu morria de vergonha”, recorda.
“Hoje em dia até agradeço os conhecimentos. É bom saber que, quando morrermos, temos pelo menos a opção de ir para um sítio melhor. Mas passei uma fase de grande rebeldia durante a adolescência. Tentava lutar contra as coisas e, como não conseguia resultados, revoltava-me. Fumava, usava calças às escondidas, andava com pessoas que ouviam heavy metal, faltava às aulas – fazia tudo para irritar o meu pai. Não me droguei, mas foi só o que faltou.”
Rute Pereira deixou a igreja aos 20 anos, antes de casar. Um dos preceitos do Movimento de Reforma dizia respeito à proibição de qualquer jovem da igreja namorar ou casar com uma pessoa oriunda de outra religião.
Rute apaixonou-se por um ateu e, inevitavelmente, usou os seus primeiros direitos de adulta para escolher outro caminho. Durante o namoro, porém, foi esmagada por todo o tipo de pressões, chamadas de atenção e ameaças de arder no fogo no Inferno. Parte delas eram exercidas pelo próprio pai, secretário da Igreja e director regular de cultos e sessões de louvor, em que dava largas aos seus dotes de oratória. Hoje em dia, Rute não sabe se, quando tiver filhos, deve educá-los numa igreja ou não. Mantém-se vegetariana e sente-se especialmente próxima de algumas filosofias orientais, nomeadamente as que prescrevem o vegetarianismo, a procura de cura natural para qualquer doença e os métodos de meditação profunda. Mas é como se algo a assustasse ainda na ideia de pertença a uma congregação religiosa.
“Não culpo o meu pai por tudo. Gosto muito dele. Fez o que fez porque procurava respostas e levou-nos para ali porque queria que nos salvássemos também. Só lamento que nunca se tenha sentado comigo e tentado perceber de onde vinha a minha rebeldia”, diz. “Na verdade, toda a relação da minha família com a igreja se desintegrou a partir da minha saída. A minha mãe, que tem problemas nervosos, até já tinha saído antes de mim. Mas foi depois que o meu pai deixou de dar o dízimo e veio a ser riscado da igreja. E foi também aí que a minha irmã, que até se tinha baptizado – eu não cheguei a fazê-lo – abandonou a igreja igualmente para casar com um homem de outra religião.”
Baseado nos estudos bíblicos de Ellen G. White, o Movimento de Reforma prevê que as mulheres devem reservar-se em especial recato, usando por exemplo saias compridas por cima das calças de ganga sempre que, por necessidade, venham a recorrer a este artigo. Era essa a maior angústia de Rute Pereira: a menorização das mulheres, do seu papel na sociedade tanto quanto do seu lugar no mundo.
A proibição de ver televisão acabou, assim, por ser quase um mal menor. “Às vezes falam-me no ‘Verão Azul’. Não sei o que é. Nem sei o que é ‘O Panda Tao Tao’ ou ‘A Árvore dos Patafúrdios’. Mas sei o que é ‘O Justiceiro’, porque ia ver às escondidas a casa dos amigos”, conta. “Só quando eu tinha 16 anos o meu pai cometeu o pecado de comprar uma televisão lá para casa. E apenas para ver programas sobre a natureza ou cassetes de vídeo com cultos ou programas para jovens Mas o que mais me chateou naquela igreja foi sempre eu não a ter visto mudar as pessoas para melhor. Basicamente, trata-se de uma guerra de aparências, em que se está sempre a avaliar quem parece mais cristão do que os outros.”
IMPOSSÍVEL CASAR
“Nenhum homem ou mulher do Movimento de Reforma casará com quem professe religião diferente.” Podia sintetizar-se assim um dos cânones mais limitadores da religião a que Rute Pereira foi obrigada a pertencer. E, no entanto, numa congregação que não ultrapassava a centena de membros a nível nacional, dificilmente Rute casaria se não encontrasse marido noutro lugar.
“Não havia rapazes. É que simplesmente não havia. E ainda hoje há mulheres na igreja com 30, 40, 50 ou mesmo 60 anos que nunca casaram. É por isso que digo que muitas das pessoas que lá continuam estão frustradas”, diz. “Por aquilo que me contam, julgo que a igreja está agora a passar por uma fase um pouco mais liberal. Mas a verdade é que aquele tempo já as pessoas não recuperam ”
Mesmo assim, fazer parte da religião católica é coisa que não passa – nem nunca passou – pela cabeça de Rute. “Não concordo com a maior parte das coisas: a idolatria, as rezas automáticas E ainda há as histórias da Inquisição, dos padres pedófilos. Não me interessa.”
FICHEIRO RNH Nº20
Nome: Rute Isabel da Silva Rodrigues Pereira
Idade: 28 anos
Naturalidade: Lisboa
Profissão: Funcionária administrativa
Fonte CM
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